Dezembro 2014

O ENTRETENIMENTO DE ZÉ POVINHO
E OUTRAS CRÓNICAS DO MUNDO
NA PINTURA DE CAMILO ALVES

Fernando António Baptista Pereira

Nesta sua segunda exposição individual, Camilo Alves, formado em Design de Comunicação mas com uma longa e profunda ligação quase umbilical à Pintura, aprofunda, nas oito telas que apresenta, os dois principais tópicos que, desde a sua primeira exposição, têm vindo a estruturar a sua visão do que entende por essa disciplina artística, ao mesmo tempo tão identificável e de abrangências tão fugidias em tempos epistemológicos de «campos expandidos»: a referência à História (e não apenas à História da Pintura) e ao Mundo que nos rodeia e a capacidade de intervenção da Pintura na realidade atual como instrumento privilegiado – e de certa maneira único – de interrogação de imagens, símbolos e ícones de uma cultura massificada e globalizada em que se sincretizaram estratos culturais de proveniência social e geográfica diversificada.
Falamos, claro, do modo como Camilo Alves vê e pratica a Pintura, um modo que persiste em não abdicar de uma tradição de ricas e fecundas processualidades (dos registos de intenso e ácido realismo à utilização de modelos reais) que – como bem se prova – podem ser incessantemente renovadas e postas criativamente ao serviço dessa inesgotável capacidade de interrogação crítica da imagem, quer no capturar irónico de estereótipos históricos e artísticos e no jogo que estabelece entre eles, quer na exploração cruzada das suas múltiplas e contraditórias relações com o tempo que passa…
A exposição, que eu preferiria chamar de instalação iconográfica, apresenta oito telas totalmente individualizadas – das quais falarei apenas de seis, as que estavam concluídas quando este texto foi elaborado – que se podem oferecer à leitura pelo espectador em pares de intercorrespondências. Essas relações decorrem, por vezes, de associações quase inevitáveis, por proximidade ou contraposição temática, noutros casos inscrevem-se numa lógica de encontros improváveis… Na primeira hipótese está claramente o par D. Sebastião / Napoleão, na segunda insere-se o par Voltaire / Zé Povinho segundo Vitrúvio, sendo que o terceiro par – Eva / Ecce Super Homo – parece, à primeira vista, inscrever-se na segunda hipótese, a dos encontros improváveis, mas, como veremos, decorre claramente da primeira, a contraposição temática.
As telas D. Sebastião e Napoleão irmanam-se não apenas nas referências bélicas das figuras representadas mas sobretudo pelo recurso ao universo dos brinquedos de infância, embora de sinal contrário nas duas composições. Em D. Sebastião, a espada e outros brinquedos de guerra, a coroa ou o boneco a arder colocam-nos perante o aforismo da Psicologia que nos lembra que «os brinquedos e as brincadeiras de infância são os brinquedos e as brincadeiras do adulto», com todas as consequências trágicas que daí advêm. No caso de Napoleão, o cavalo de pau que a figura monta num certo desconforto funciona como derisão, rebaixando-a, apesar de todos os seus atributos e de empunhar a espada em riste, como um falo ereto, que nos evoca a «resposta» de Orlan a L’Origine du Monde (1866)de Courbet com o seu L’Origine de la Guerre (1989).
Voltaire e Zé Povinho segundo Vitrúvio põem-nos diante de estereótipos de modelos de comportamento humano recorrentes nas sociedades ocidentais: o livre-pensador iconoclasta, que encontramos desde o Iluminismo às gerações hippie, de Maio 68 ou «alternativa», e o símbolo do povo explorado que se rebela, nem que seja só com um manguito, contra quem o oprime. Contudo, enquanto na visão «atualizada» de um Voltaire «cool» subjaz uma profunda simpatia pela condição desses intelectuais que ajudaram a por de pé o mundo contemporâneo, no novo ethos que é dado a um Zé Povinho erigido a símbolo pela mão da geometria de Vitrúvio/Leonardo sublinha-se o contraste entre a alienação da figura pelos inúmeros entretenimentos com que o Poder sabe adormece-lo – a «bola», as «bonecas», as «minis» – e a sua capacidade de revolta violenta, infelizmente as mais das vezes adormecida pelos «brandos costumes»…
O terceiro par – Eva / Ecce Super Homo – transporta-nos para dimensões religiosas e existenciais, revisitadas num registo que articula vários palimpsestos da cultura visual erudita e algum imaginário da BD e do cinema da cultura de massas. Só não é um «encontro improvável» porque, de acordo com a tradição judaico-cristã, foi por Eva que se deu a Queda do Homem, que o Filho do Homem (Jesus Cristo, que foi apresentado como Ecce Homo) veio resgatar. De resto, em Eva, o fundo, emprestado do incunábulo Crónica de Nuremberga, uma espécie de Wikipédia do final do século XV, refere explicitamente a narrativa visual do Pecado Original, enquanto, em Ecce Super Homo, se cita, com muita liberdade e criatividade, essa magnífica pintura icónica do século XV português (embora só a conheçamos por cópias já quinhentistas) que representa o Ecce Homo de corpo macerado pela Flagelação, olhos tapados pelo sudário furado pelos espinhos da coroa e as mãos atadas por uma corda. As «atualizações» a que Camilo Alves procede nestes dois temas apontam em sentidos quase opostos: enquanto o gesto trivializado de Eva não esconde, antes enfatiza, a sensualidade da Tentação, a expressão pungente e as mãos estendidas do idoso que quase boia dentro do fato do Super-homem, pisando a corda caída aos seus pés, erguem-se como um grito mudo de uma Humanidade aturdida e afogada pelas imagens contraditórias do seu destino e redenção.
No seu conjunto, as oito pinturas apresentam-se como originais e interpelantes «Crónicas do Mundo», como lhes chamei, sem preocupações de inventário exaustivo, que caberia às ciências sociais e não à arte, mas com profundo sentido crítico, ricas e cultas referências e desapiedada visão irónica, por vezes mesmo sarcástica, como é da melhor tradição artística do passado e do presente. Nelas e com elas, Camilo Alves, ao mesmo tempo que exalta a Pintura como «fazer» e como «intervenção», interroga, sem falsos pudores e sem oportunismos de conveniência ou moda, os estereótipos banalizantes e as imagens castradoras com que uma cultura globalizada mascara aqueles que, em cada época, vamos descobrindo como os verdadeiros valores humanos.

 

Junho 2013

ÚLTIMO DIA
ÚLTIMA TELA
Luís Camilo Alves

Ao longo destes 26 dias a família, os amigos e outras pessoas apreciadoras de arte deram-me a honra de visitar a exposição. Vendi todos os meus trabalhos, à excepção de uma tela.
Esta tela, Caos no Lar, tem uma história por trás que gostaria agora de contar. A ideia do tema para esta pintura surgiu-me depois de assistir a uma palestra sobre a Pintura Holandesa, proferida pelo historiador Jorge Estrela, na Faculdade de Letras de Lisboa, em Abril deste ano. Faz hoje precisamente dois meses.
Durante a conferência vi a imagem de uma pintura de Jan Steen (1625/26-1679) que me fascinou. “As the Old Sing, so Twitter the Young” (ca. 1668-70) retrata o interior de uma casa cheia de gente comum. Ao canto da sala, um velho jaz adormecido. De uma forma deliciosa, Jan Steen procurou retratar as transgressões que acontecem quando não se está vigilante.
No meio da confusão, um pormenor chamou-me a atenção: ao fundo, uma gaiola com dois pássaros pendurada na parede. Trata-se de uma metáfora utilizada na época e que representa a harmonia no lar.
Na minha pintura decidi “libertar a passarada” criando assim o “Caos no Lar”. Daí a portinhola da gaiola aberta e os pássaros à solta. O ponto de partida foi uma imagem com umas senhoras snobes, austeras e rígidas, à boa maneira vitoriana. Escolhi substituir a cabeça de uma delas pela cara grotesca e divertida de uma boneca insuflável.
“Caos no lar” é pois a minha transgressão a essa mentalidade cinzenta, pretensiosa e rígida com que por vezes nos confrontamos.
“Caos no lar”, 2013, óleo sobre tela, 85x120 cm

 

Maio 2013

FÁBULAS E HISTORIETAS
Jorge Estrela

Num mundo em que os objectos se dissolvem nas prateleiras de uma loja global, os gestos perdem o significado da sua expressão comunicativa e as ideias são apenas notícias, é bem claro que toda a estrutura simbólica que durante séculos norteou diálogos e sintetizou sentimentos deixou de ser significante. A pintura foi desde sempre o local da expressão isolada onde na planura de duas dimensões se afirmavam as singularidades. As árvores reverdecendo de Mantegna, as florestas sombrias de Altdorfer, o arminho de Leonardo da Vinci, o unicórnio de Rafael, as rosas castas de Zurbarán, os crepúsculos de Millet, o grito de Munch, as janelas para o infinito de Mondrian.

Camilo Alves tenta ressuscitar essa narração alegórica que decorre dos símbolos. Ela surge sob as formas descritivas em que os objectos lançam a imaginação, pelas veredas do medo, da natureza, do erotismo, da ciência ou do correr do tempo. Para isso revisita a branca forma escultórica de onde a cor se evola gritante, derramando sobre ela curiosidade e emoções.  O resultado é a perplexidade que mais do que  encaminhar o olhar para os meandros da decifração de uma linguagem leva cada um de nós a reencontrar-se com as suas próprias dúvidas.